A pedra fundamental e a ruína
Um marco do modernismo mundial entra nos planos de demolição da cultura do governo Bolsonaro
Por Luis Zamorano
28/10/2021
Fonte: Revista Piauí
O bafo do verão carioca adentrou a cabine da aeronave da Air France no instante em que o comissário de bordo destravou a porta do Caravelle recém-chegado de Paris. Eram 9h50, e o calendário marcava o penúltimo sábado de 1962. No pátio de pouso do Galeão, uma comitiva liderada pelo embaixador francês aguardava o desembarque do arquiteto franco-suíço Le Corbusier – seu nome de batismo era Charles Édouard Jeannéret-Gris. Enquanto a maioria dos passageiros viajava com a intenção de passar o Natal no país, Le Corbusier, desdenhando a cerimônia religiosa, tinha outro objetivo: encontrar no Brasil um solo fértil para sua obra vanguardista.
Era a terceira visita
que fazia ao país. Na primeira, em 1929, nada foi fecundado. Mas na segunda,
sete anos depois, o arquiteto deixou um fruto
precioso: um prédio desenhado com sua consultoria, considerado por críticos
estrangeiros o edifício público moderno
mais importante das Américas. No intervalo entre 1936 e 1962, quase tudo
havia mudado no mundo. A começar pelo meio de transporte, pois foi um
dirigível, o Graf Zeppelin, que trouxe o arquiteto ao Rio de Janeiro nos anos
1930. O próprio Le Corbusier não estava imune ao tempo: já não tinha mais a
energia dos seus 48 anos, como na célebre segunda visita.
Quem desembarcava
agora no Galeão era um senhor de 75 anos, mas que não dera por encerrada a sua
carreira. Apesar de seus feitos mundo afora, devia estar consciente do pouco
tempo que lhe restava e talvez carregasse no peito a angústia de não ter feito
tudo que ambicionava, embora houvesse desfrutado de pequenas conquistas. Tanto
assim que desceu do Caravelle segurando orgulhosamente uma foto colorida de
Chandigarh, a cidade projetada por ele alguns anos antes na Índia.
Ao sair do avião, o
vento despenteou os poucos fios brancos que lhe restavam na cabeça. Salvo os
sinais da idade, como a calvície, seu physique du rôle não
mudara. Alto e elegante, de terno e gravata-borboleta, os óculos de grosso aro
negro que lhe valeram o codinome “o corvo”, Le Corbusier parou no alto da
escada da aeronave e observou a paisagem.
Muita coisa também
mudara no Brasil nos 26 anos que separavam a sua nova visita da anterior. Para
ficar somente nas questões arquitetônicas, os imberbes colegas cariocas que Le
Corbusier havia orientado em 1936 agora gozavam de prestígio internacional.
Sobretudo Lucio Costa e Oscar Niemeyer, quinze e vinte anos mais novos que ele,
mas autores, talvez para sua inveja, do urbanismo e dos prédios da nova capital
do país, Brasília.
Quando o arquiteto
pisou no solo brasileiro, o embaixador francês logo perguntou: “E o senhor
Costa, onde está?” Como de hábito, Lucio Costa não estava à frente do
proscênio. Encontrava-se um pouco atrás da comitiva, em segundo plano, até ser
trazido à frente das pessoas que aguardavam Le Corbusier no Galeão.
O visitante foi
enlaçado afetuosamente por Lucio Costa, que o recepcionara também em 1929. Le
Corbusier fez questão de mostrar ao colega a foto de Chandigarh. Competitivo, o
gesto parecia querer dizer: “Vocês, os discípulos, fizeram sua capital, mas,
eu, o mestre, não fiquei atrás…” Ao caminhar em direção à alfândega, Le
Corbusier foi assediado por estudantes e jornalistas. Para fugir das perguntas,
elogiou a natureza exuberante do Rio de Janeiro, que sempre lhe impressionou.
A evasiva não o impediu
de escutar perguntas incômodas, como a do repórter que fez a indagação que
todos queriam fazer, sobre o que achava de Brasília. “Não tenho opinião a
respeito nem quero me imiscuir nos problemas dos outros, pois tenho bastante
dificuldade com os meus próprios”, respondeu, com a mesma aspereza de seu
concreto. A pergunta seguinte lhe daria uma razão extra para aumentar o ódio
que tinha de jornalistas: seria verdade que, antes do concurso do Plano Piloto
de Brasília, ele tinha escrito uma carta ao presidente Juscelino Kubitschek
oferecendo-se para projetar a nova capital? O recém-chegado tentou
desconversar, enquanto Lucio Costa segurava o sorriso embaixo do espesso
bigode, pois sabia da existência da carta. Diante da insistência do jornalista,
o visitante replicou, lacônico: “Oh, mas isso é história…”
Com o passaporte
carimbado, Le Corbusier se deu conta de que sua mala estava sendo levada para o
carro de Lucio Costa. “É um homem precioso”, comentou, sobre o colega
brasileiro, enquanto o carregador acomodava a bagagem no automóvel, um Hillman
bege.
O que trazia Le
Corbusier novamente ao Brasil era o convite do governo francês para que
desenhasse os prédios da embaixada e da chancelaria na nova capital. Havia
ainda duas outras oferendas na mesma cidade, articuladas por brasileiros. Mas a
viagem resultaria num tremendo fracasso: nenhum desses projetos foi construído.
O único consolo para Le Corbusier, ao fim da jornada, foi a oportunidade de
visitar Brasília, cidade responsável por um novo capítulo do urbanismo mundial.
Ele também viu de perto os edifícios no Rio traçados por seus discípulos e,
mais importante do que tudo, matou a vontade de conhecer o edifício-sede do
Ministério da Educação e Saúde, em cujo projeto havia colaborado em 1936.
Além do pilotis, o
prédio continha outros ingredientes do ideário corbusiano, como o teto-jardim,
as fachadas livres e os brise-soleils, mas tudo estava temperado à
brasileira. Ao se aproximar de um dos famosos pilares com 10 metros de altura,
Le Corbusier, ladeado por Lucio Costa, diminuiu o ritmo ainda mais, até
postar-se ao lado de uma das peças estruturais que alicerçou a moderna cultura
arquitetônica brasileira. Enquanto o anfitrião discorria sobre o edifício, Le
Corbusier levantou o braço lentamente e, como se estivesse cumprimentando um
filho do qual sabia tudo a respeito, mas que nunca havia abraçado, deu
incontáveis palmadas carinhosas no pilar e depois o acariciou, sentindo a
materialidade do granito como se fosse um ser vivo. Emocionado, o mais
discursivo dos arquitetos de seu tempo só conseguiu dizer uma frase: “É lindo,
é lindo…”
“Inacreditável.”
Foi
com esse título que Maria Elisa Costa, hoje com 86 anos e a única testemunha
viva da visita de Le Corbusier ao prédio do Ministério da Educação e Saúde,
abriu sua postagem no Facebook. Publicado na metade de agosto passado, o texto
foi das primeiras reações a uma informação veiculada no mesmo dia pelo
jornal Valor Econômico e logo replicada em outros veículos.
Sem se ater à data macabra – era sexta-feira, 13 de agosto –, o jornal
informou, em texto sumário, que uma das “estrelas do ‘feirão de imóveis’”
públicos na lista de 2 263 estabelecimentos ofertados ao mercado pelo governo
federal era o Palácio Gustavo Capanema, nome atual do antigo edifício do
Ministério da Educação e Saúde. Maria Elisa Costa alertou, indignada com a notícia
do leilão, que o prédio “foi um marco definitivo na consolidação da arquitetura
moderna não apenas no Brasil, mas no mundo. Ignorar este fato é um atestado de
ignorância que o Brasil não merece”.
A repercussão
internacional não tardou, e alguns dos principais críticos e historiadores da
matéria tomaram contundentes posições, prontamente divulgadas no Brasil pelo
site de arquitetura Vitruvius.
Para o francês
Jean-Louis Cohen, “o edifício não é de forma alguma um bem imobiliário que
pudesse ser mais rentável, como o atual governo brasileiro parece querer. Não é
simplesmente um capital a ser valorizado, mas uma obra de arte de alcance universal, que não pode ser recheada de
atividades banais e comerciais”. O historiador inglês da arquitetura William
Curtis declarou que “a ideia proposta de entregar esta obra-prima aos
interesses imediatistas da propriedade privada constitui um ataque ideológico
aos valores cívicos e à própria história da nação, mais um ataque desse regime
contrário à esfera pública e aos valores progressistas em geral, seja na escala
das florestas tropicais, seja no da saúde pública nacional. Tudo deve ser feito
para proteger esta obra-prima universal de um ato de vandalismo que ignora os
valores da memória de longo prazo na sociedade brasileira.”
Já o inglês Kenneth
Frampton escreveu ser “difícil imaginar qualquer evento neoliberal mais bárbaro
do que a decisão peremptória de leiloar o Ministério da Educação e Saúde no Rio
de Janeiro”.
A notícia também
contaminou o ambiente cultural brasileiro, uma vez que a importância do prédio
transpassa o mundo da arquitetura. Adriana Varejão publicou em sua página no
Instagram uma imagem dos azulejos que Candido Portinari criou para o edifício.
Lacônica, a artista plástica – cuja obra alimenta-se do imaginário do próprio
azulejo – nomeou o edifício sem tecer comentários, ação prontamente realizada
por seus indignados seguidores, que escreveram frases como “não tem preço” ou
“Patrimônio nacional! Não se vende!”. Perante o absurdo, as pessoas propuseram
campanhas de mobilização, abaixo-assinados e até um protesto diante do
edifício.
Em paralelo, a
informação contaminou a esfera política, mobilizando parte da oposição ao
governo. O deputado federal Marcelo Freixo, do PSB do Rio de Janeiro, foi um
dos que se manifestaram, escrevendo que o edifício “nos remete a Oscar
Niemeyer, Candido Portinari, Burle Marx e tantos outros. Paulo Guedes, por
favor, recolha-se a sua insignificância”.
Vender bens federais
supostamente ociosos é um dos planos de governo de Guedes, ministro da
Economia, com o objetivo de tornar a máquina pública mais eficiente e arrecadar
fundos. Se feita com critério e sapiência, a venda de imóveis públicos
subutilizados pode ser benéfica à sociedade. É um tipo de iniciativa comumente
identificada com as ações da direita liberal, mas vale lembrar que a esquerda,
em geral avessa à venda de ativos públicos, deu recentemente um exemplo notável
dos benefícios sociais que podem ser extraídos disso.
Refiro-me ao
Réinventer Paris, projeto lançado pela atual prefeita da capital francesa, a
socialista Anne Hidalgo. A prefeitura ofertou a venda para a iniciativa privada
de 23 imóveis, desde prédios históricos até terreno aéreo (gleba situada sobre
um trecho do anel viário). Justamente por dizer respeito a bens públicos, a
venda não se ateve ao maior valor a ser pago: o objetivo foi potencializar o
tecido urbano, estimulando o setor privado a inovar. Assim, a venda dos imóveis
estatais subutilizados em Paris foi realizada para os empreendedores que
apresentassem os projetos mais inovadores. Cada propriedade foi disputadíssima,
e as propostas levaram em conta desde arranjos sociais complexos até
experimentos ambientais de vanguarda.
Cada consórcio
participante era composto necessariamente por dois braços. De um lado,
investidores e agentes imobiliários; de outro, arquitetos, com importantes
profissionais de vários países. Os vencedores foram escolhidos por um comitê do
qual fazia parte o conselho de moradores de cada bairro impactado pela venda.
Houve até a participação de um consórcio franco-brasileiro, o Urbem/Triptyque,
que enviou doze propostas, duas das quais foram desenhadas pelo brasileiro
Paulo Mendes da Rocha e pelo chileno Alejandro Aravena, ambos ganhadores do
Pritzker, o principal prêmio de arquitetura do mundo – mas nenhuma delas foi
escolhida.
A ação de Hidalgo foi
lançada sete meses após ela assumir o governo (em 2014) e, com o sucesso da
ação e a reeleição da prefeita (2020), já foi replicada mais duas vezes. A
iniciativa demonstra que, para além das questões ideológicas, a venda de
imóveis públicos pode ser benéfica ao bem comum. Mas um projeto assim é
evidentemente muito complexo e sofisticado para ser empreendido pela gestão do
presidente Jair Bolsonaro, que, provando mais uma vez sua ineficiência, levou
mais da metade do mandato, ou seja, dois anos e meio, para começar a tirar do
papel a proposta de venda simples e elementar dos bens da União, por meio de
leilões pelo melhor preço.
Mas não cito a
iniciativa parisiense como exemplo do que deveria ser adotado para o Palácio
Capanema, que jamais deve ser alienado, tendo em vista a sua importância
simbólica para o Brasil. Como definiu o deputado federal Marcelo Calero
(Cidadania-RJ), ex-ministro da Cultura, o edifício é um expoente do processo
civilizatório brasileiro. “Apenas uma gestão totalmente descolada de nosso
arcabouço civilizatório e cultural poderia propor um absurdo desses”, escreveu
ele, em uma rede social.
Os tapumes que hoje
cercam o Palácio Capanema, arrematados por arame farpado, não estão ali para
protegê-lo de uma suposta depredação que possa sofrer durante o leilão. O
edifício está fechado há sete anos para um restauro que já custou cerca de 100
milhões de reais aos cofres públicos. É provável que esse valor tenha chamado a
atenção da equipe de Paulo Guedes e a levado a incluir o imóvel no feirão.
Afinal de contas, se o restauro custou essa quantia, quanto será que vale o
edifício?
Há outras duas
hipóteses para a inclusão do Palácio Capanema: ou esse governo, no rastro de
ignorância que o norteia, desconhece a importância do prédio ou simplesmente
despreza o valor histórico e artístico que ele tem.
O Palácio Capanema
não faz parte do imaginário de grande parte dos cariocas, como a Biblioteca
Nacional ou a Igreja da Candelária – mas deveria. Muita gente desconhece a
relevância do prédio porque o uso burocrático acaba restringindo o acesso aos
visitantes. O prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, afirmou que 99,9% das
pessoas que defendem a preservação do edifício nunca chegaram perto dele. O
escritor Milton Hatoum respondeu ao alcaide, dizendo que, “provavelmente, 99,9%
das pessoas nunca entraram no Palácio Itamaraty (Brasília) nem na Reserva de
Desenvolvimento Sustentável de Mamirauá, no Médio Solimões (AM). Mas nem por
isso o projeto de Niemeyer e um pedaço paradisíaco da natureza amazônica devem
ser privatizados”.
Se no passado o
edifício teve grande importância na vida cultural do Rio de Janeiro – abrigando
palestras e exposições, além de ter servido como sede temporária ao MAM –, nas
últimas décadas foi muito pouco usufruído pelo público. Idealmente, no
pós-trevas, mesmo que ainda mantenha repartições públicas ligadas à cultura,
seria útil dar um uso exemplar ao pilotis, ao mezanino e ao auditório. O espaço
tem vocação para ser a plataforma pública da cultura brasileira, desde que haja
um governo interessado em transformar o Palácio Capanema na ponta de lança de
uma sociedade mais justa, igualitária, inclusiva e também – não custa sonhar –
impregnada por aquela alegria dos blocos que costumam brincar no pilotis na
época do Carnaval.
Especialistas
garantem que existe um entrave jurídico na venda de imóveis públicos protegidos
pelo patrimônio histórico. Segundo o artigo 11 do decreto-lei nº 25, de 30 de
novembro de 1937 – mesmo ano do início da construção do Palácio Capanema –, os
bens tombados que pertencem ao Estado, sejam os da esfera federal, estadual ou
municipal, são inalienáveis por natureza e não podem ser vendidos a
particulares: só podem ser transferidos para outra esfera. Ou seja, a venda para a iniciativa privada é ilegal.
Paulo Guedes, após a
polêmica, garantiu a interlocutores que o Palácio Capanema não seria colocado à
venda – no dia 20 de agosto, o Ministério da Fazenda publicou uma nota
afirmando que o edifício estava fora do edital.
Todavia, segundo
o Valor Econômico, apesar de estar fora da lista, o Palácio
Capanema permanece liberado para ofertas. Durante o lançamento do feirão, o
secretário especial de Desestatização, Desinvestimento e Mercados, Diogo Mac
Cord – responsável pelo leilão –, garantiu ao jornal que não há impedimento
para a venda de um bem tombado e citou uma nova lei que a autoriza. Feliz da
vida, declarou: “O recado que eu queria dizer hoje é: mercado, façam suas
apostas.”